super regionalismo crítico



Poderá o anti-regionalismo-crítico incorrer num equívoco, paradoxal, diria, ao afirmar-se, assim, sem peias, como sói dizer-se, que a crítica ao lugar é externa à própria arquitectura. Percebo a generosidade, ou melhor, o desejo. Recentrar a disciplina, nesta época centrífuga, às matérias que lhe são, perdão, ontologicamente constitutivas. Que matérias, que categorias, serão essas de exclusiva interpretação pela arquitectura?
O paradoxo residirá na própria compreensão (crítica) do que será esse genius loci, ou esse lugar, que, via regionalismo crítico, se expõe como matéria a partir da qual a arquitectura se poderá inventar. Porque ao invés desse lugar ser um fardo de palha a ruminar, palha seca, pesada, já enformada, cristalizada, para alimento bovino, pode ser que se compreenda o lugar à luz dos movimentos que se vão cruzando em cada lugar. Lentos, os arcaicos, velozes, os contemporâneos.
A ideia de um lugar fixado no consciente ou inconsciente, um lugar mítico, serve e se serve de um uso ideologicamente atávico e arcaico e medroso e mesquinho da compreensão do mundo e da arquitectura. E é uma construção mental tão mais equívoca quanto a natureza dos lugares é da ordem do movimento e do cruzamento, da apreensão do outro e da aculturação do diverso, da apropriação do desconhecido e da reinvenção pragmática do conhecido.
É bonita e generosa, claro, essa ideia de uma arquitectura que nos sirva em Lisboa ou no Rio de Janeiro, em Paris (noTexas), ou em Teerão. O homem e as suas circunstâncias: sendo que as suas circunstâncias serão, justamente, diversas e múltiplas e em permanente desdobramento na sua colisão com o mundo. A reinvenção da culinária italiana depois de Marco Polo, a Batalha depois de Charters, o manuelino depois de Vasco da Gama, Lúcio Costa depois de Le Corbusier, Siza Vieira depois dos brasileiros. E sejamos unânimes, a arquitectura sempre foi um fenómeno global: vive das trocas e dos encontros, do entendimento e do desentendimento, da liguagem, ou dialecto, do outro.

Um exemplo:
da periferia portuguesa, resguardada por uma barragem ideológica, ainda assim se chegou ao modernismo, a um tardo-modernismo. Depois do Inquérito de 48, depois do esforço de Távora, e que se lança ao mundo quando o mundo se lançava já no pós-modernismo. E pelo meio, o repertório brasileiro do Estilo Internacional que é avidamente acolhido pelos arquitectos portugueses via Brazil Builds (1943). É justamente este catálogo da exposição em Nova Iorque que sugere aos portugueses uma via de acesso à modernidade. E aqui, precisamente neste e a partir deste volume, que fixa a via tropicalista da modernidade, que se percebe a incorporação de elementos da tradição colonial, formal e ideologicamente, reinventados a partir do modernismo corbusiano.
Lúcio Costa, ingenuamente, sustentava essa tradição colonial (uma ética construtiva, princípios tectónicos), como o princípio de uma identidade local por oposição ao ecletismo importado beaux-arts que dominava o princípio do séc. XX brasileiro. Tese discutível, talvez, e que talvez diga mais de Lúcio Costa, entre o balanço da modernidade e a herança da tradição, que propriamente dos vínculos entre o vernáculo brasileiro e o vernáculo português. Mas, no meio de muita ignorância, por fé vamos crer nesse laço, e daí resultará que ao acederem a Brazil Builds, os arquitectos portugueses acederam a uma vida da modernidade que de forma inesperada corresponderia à sua própria tradição, resgatada do regionalismo ideológico imposto pelo regime de então. A tese é a de Ana Vaz Milheiro (A construção do Brasil: Relações com a Cultura Arquitectónica Portuguesa).

Ou de como o regionalismo-crítico pode ser o resgate dos movimentos culturais ocultados pelo tempo e pelos usos, a re-descoberta do significado das coisas, a re-significação das coisas, sem ser necessariamente atávico ou reaccionário, por oposição a um mítico, também ele, internacionalismo arquitectónico. E se há matéria que seja constitutiva da arquitectura é precisamente a cultural.