A sociedade da fealdade


A moda, como assunto sério, é bastante mais esclarecedora sobre a sociedade e o indivíduo dentro dela que qualquer tese ou dissertação em «ciências» sociais da Nova ou do ISCTE (dado que estas obedecem a uma natureza ideológica mais preocupada em fazer política que na procura da Verdade). A moda como hábitos e costumes com que atravessamos o quotidiano e não o mero campo da disciplina do desenho de vestuário, bem entendido.
A aceleração da sociedade de consumo e a omnipresença das mesmas imagens propagadas em todos os lugares do planeta tem efeito imediato na homogeneização da(s) cultura(s) (não só) visual e produzem uma profunda modificação (antropológica) no modo como o indivíduo se reconhece a si mesmo dentro das teias de relações sociais em que se insere. A exposição, cada vez mais acentuada, de todos nós às mesmas imagens resulta no seu consumo irreflectido e, a partir daqui, na elaboração de estratégias individuais que afirmem a individualidade dentro da terraplanagem cultural em curso.
Ora, resulta daqui a necessidade de se questionar o estatuto da imagem, da política da imagem e, para o que aqui interessa, a relação do indivíduo com essas imagens e como as interpreta no seu quotidiano, no modo de falar, de se vestir, no modo como se faz visível no meio do turbilhão onde todos nos queremos destacar - e aqui há que compreender, entre outras coisas, os fundamentos da cultura da sociedade de consumo, que insistem (como um martelo sobre as consciências) na promoção da «novidade», na celebração do «original», no recuo do espaço público de tudo (e todos) o que não obedeça a um padrão social que alimente a roda do consumo (os velhos com cada vez menos visibilidade; as crianças vistas como tábua rasa para endoutrinação de futuros consumidores, por exemplo).
São mais que conhecidos os efeitos estéticos e éticos desta voracidade. Como uma embriaguez de imagens e ruídos que a todos deixa em transe e incapazes de tecer um murmúrio crítico (racional) que seja. Enfim, uma sociedade de alienados sem capacidade de qualquer de subverter a ordem do consumo. Sendo a própria subversão absorvida pelas lógicas do mercado e tornadas, instantâneamente, produto disponível para consumo – e é esta a tremenda perversão do estádio actual do capitalismo que, tendo a capacidade para em tudo colocar um preço, chegou a hora, agora, de colocar cada um de nós, a partir do seu mais íntimo, à venda.


A tatuagem (e o piercing), por exemplo.
Até há pouco tempo significantes da fuga aos valores dominantes inscrita na pele, é agora, massificada e «democratizada» a incisão visível da ambiguidade com que, por via dos mecanismos do consumo, se debate cada indivíduo do interior da sua esfera mais íntima.
Se, por um lado, a tatuagem pretende a individuação radical do sujeito - tão radical que este se submete a sessões de tortura com agulhas para a inscrever – através dos desenhos que se supõem «únicos» e «originais», é, por outro lado, sinónimo da massificação do gosto e da padronização de comportamentos. O objecto que se pretendia único e singular, numa sociedade onde cada vez mais somos iguais uns aos outros no gosto e no desejo, desenhado para afirmar veementemente os valores individuais do sujeito, é afinal, agora, símbolo da sujeição e submissão passiva e acrítica do sujeito a esses mesmos valores que pretendia contrariar. O 'mercado', mais uma vez, açambarcou as 'margens' que dele procuravam fugir. O mercado insidiosamente chegou à alma.

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O discurso progressista, assente na língua-de-pau das «diversidades» concorre e é, afinal, o idiota útil do rolo compressor consumista que não deixa nada, absolutamente nada, de fora do mercado.

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Lateralmente: um outro facto pode estar na origem da proliferação das (horríveis) tatuagens. Se o substracto antropológico do cristianismo em que se fundava a nossa civilização afirmava cada mulher e cada homem como ser único, singular, feito à imagem de Deus, estava tatuado no espírito e na alma de cada mulher e de cada homem essa singularidade e originalidade irrepetíveis, sem necessidade de exteriorização da individualidade. No novo mundo, ateu e secular, sem qualquer tipo de referência à singularidade do ser humano e onde o sujeito é mera célula do quadro excel, é necessário o recurso a estratégias de visibilidade que afirmem explicitamente o sujeito.
You can run, but you can't hide. Nada nem ninguém está a salvo do nihilismo consumista.

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Sobra a questão do belo e do corpo. E a recusa modernista - ocupado que estava o modernismo com a funcionalidade e a objectividade a partir da tábula-rasa da História - em pensar o belo. O pós-modernismo querendo recuperar a História pretendeu fazê-lo através da ironia. E a ironia pouco mais realizou que a irrisão. E hoje, o coração do pensamento e da produção artísticas contemporâneos é a mortal derrisão. O nihilismo (narcisista) a partir do qual hoje olhamos para o mundo - e o pretendemos conformar à nossa subjectividade - recusa qualquer absoluto. Qualquer ideia de que se suspeite pôr em causa a cadeia da relativização dos valores é atirada para o beco do anátema intelectual. Muito menos recuperar a categoria do belo para pensar o mundo. Nada pode travar a (transcendente) máquina do mercado que perversamente nos seduz à sua servidão usando a nossa própria liberdade como via. Produzir um juízo estético sobre os gatafunhos inscritos sobre a pele é, na fantasia da liberdade que o mercado nos serve, um pecado contra a emancipação do gosto e do corpo. Obviamente, a relativização do gosto e o uso do corpo como território político, são os meios pelos quais a fealdade se massifica. Estamos cada vez mais rodeados do feio.